segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Omissão inaceitável (Artigo)

*Marta Suplicy

     Quanto mais a sociedade avança na compreensão e, consequentemente, na aceitação da homossexualidade, maior a reação homofóbica. Isso vem de uma parte da sociedade (minoritária, mas estridente) e tem se agravado: discursos contra gays, violência de rua e assassinatos.

     Há algumas décadas assistimos, na representação parlamentar, a um movimento em direção ao conservadorismo. Projetos como o de parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, que apresentei há 16 anos, caducam.

     Desarquivei com relativa facilidade o projeto de lei da Câmara 122, que criminaliza a homofobia. O texto, de autoria da ex-deputada federal Iara Bernardi, levou quatro anos para ser aprovado. Depois, tivemos um valoroso trabalho da ex-senadora Fátima Cleide, que o aprovou na Comissão de Assuntos Sociais do Senado. Hoje ele está na Comissão de Direitos Humanos.

     A dificuldade que temos é a mesma de sempre: grupos religiosos que fazem da homofobia sua plataforma eleitoral, pessoas que confundem o combate aos atos de violência contra homossexuais com o apoio à união estável ou ao casamento e senadores nada interessados em se expor por um assunto cada vez mais radicalizado e mal compreendido por uma parte do eleitorado.

     A consequência desse apequenamento e conservadorismo dos parlamentares tem sido o aumento de crimes homofóbicos no Brasil e a judicialização de uma responsabilidade que é do Congresso.

     A Argentina, que tinha conduta conservadora em relação ao tema, aprovou, em julho de 2010, o casamento gay. Enquanto isso, temos espancamentos na avenida Paulista.

     Algumas ações têm ajudado a contrapor essa omissão que envergonha nosso país: a ação proposta ao Supremo Tribunal Federal pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, que propiciou o histórico resultado favorável à união estável para casais homoafetivos, a impecável posição do dramaturgo Gilberto Braga na novela "Insensato Coração", esclarecendo milhões, o meu requerimento ao Conselho Nacional de Justiça pela regulamentação da união estável e textos como o de Contardo Calligaris (Ilustrada, 10/11), que interpretam psicanaliticamente o ódio homofóbico.

     Nesse momento, trabalho para aprovar no Senado um substitutivo ao PLC 122, com mudança no artigo 20, referente à liberdade de expressão. As modificações foram feitas em conjunto, por mim, por Toni Reis (presidente da ABGLT) e pelos senadores Marcelo Crivella e Demóstenes Torres.

     O Congresso brasileiro não pode continuar a reboque da sociedade. Já passou da hora de ele fazer sua parte para termos leis que reafirmem valores democráticos e humanitários neste mundo de outros valores que se descortina.

      *MARTA SUPLICY escreve aos sábados nesta coluna. FOLHA DE S. PAULO - SP


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As contradições do discurso ambiental no cerne do sistema capitalista

Por André Antunes*

     Dizer que determinada prática, produto ou empresa é ‘verde’ tornou-se quase um lugar-comum nos últimos anos: ‘verde’ qualifica aquele que se preocupa com o meio ambiente, com a preservação dos ecossistemas e com o futuro do nosso planeta como um todo. É quase como se tudo o que leve o selo ‘verde’ seja, por definição, positivo. Essa popularização do termo não ocorreu por acaso. Ela foi fruto da penetração cada vez maior da questão ambiental na agenda pública internacional. Não à toa, muitos dos debates feitos atualmente na área ambiental em âmbito global giram em torno da ‘economia verde’, concepção que tem sido adotada inclusive pela Organização das Nações Unidas (ONU) como resposta à crise econômica, ambiental e de escassez de alimentos.

     Mas o que prega a economia verde, propalada como uma promessa de integração entre crescimento econômico, preservação ambiental e redução da desigualdade? E quais são os principais problemas que pesquisadores e movimentos sociais ligados à questão ambiental identificam nas suas propostas?

Correntes do ambientalismo

     Por mais que seja difícil achar alguém que seja ‘contra’ a preservação do meio ambiente, não existe um consenso sobre qual é a melhor maneira de atacar o problema da degradação ambiental. O discurso da economia verde é apenas um dos que compõem o quadro do ambientalismo global, e, antes de falarmos especificamente dele, é necessário fazer um breve apanhado da historia e dos atores que compõem esse quadro.

     Os diferentes discursos ambientalistas costumam ser agrupados em três correntes principais, de acordo com a postura que adotam em relação ao crescimento econômico. No livro ’O Ecologismo dos Pobres’, o economista catalão Joan Martinez Alier afirma que o ambientalismo, como movimento reivindicatório autoconsciente e organizado surge na transição do século XIX para o XX, nos EUA. Chamada por ele de “culto ao silvestre”, essa primeira fase caracteriza-se pela postura de não contestar o crescimento econômico e os impactos ambientais dele decorrentes, defendendo, porém, a preservação e a manutenção de bolsões de natureza original fora da influência do mercado. Segundo Alier, a principal proposta política dessa concepção de ambientalismo consiste na criação de reservas naturais livres da interferência humana. “Essa corrente compreende que algumas áreas devem ser preservadas do acesso humano justamente pelos efeitos deletérios que as intervenções causam. Ela é importante para a história da ecologia por entender que manter áreas de preservação de florestas, por exemplo, é fundamental para a preservação da água e da atmosfera”, explica Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

     As doutrinas dessa corrente, explica o livro de Alier, irradiaram-se dos EUA e Europa em direção à América Latina, Ásia e África, através das primeiras organizações ambientalistas transnacionais bem estruturadas, como a Worldwide Fund of Nature (WWF), a International Union for the Conservancy of Nature (IUCN) e a Nature Conservancy. Um dos principais fatores limitantes dessa corrente, diz Alexandre Pessoa, é o fato de que ela desconsidera a questão social na problemática ambiental. “Como o ser humano faz parte da natureza e estabelece relações de produção e sociais com ela, a ecologia exige uma equação para além das áreas de preservação”, analisa.

Crítica ao desenvolvimento e justiça ambiental

     A segunda corrente ambientalista remonta ao final dos anos 1960, de acordo com Henri Acselrad, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No contexto das lutas sociais que marcaram o período na Europa e nos EUA, surge no movimento ambientalista um discurso contracultural, “que interpelava o consumismo sistêmico como projeto para a sociedade”, criticando a ideia de desenvolvimento no capitalismo, segundo Acselrad. “Nesta perspectiva, a própria qualidade do desenvolvimento estava sendo interpelada. Recursos biosféricos limitados deveriam ser utilizados, sim, mas apenas para os fins mais legitimados por um debate democrático, mais compatíveis com o que se pudesse entender por felicidade dos povos”, afirma.

     Atualmente, segundo o livro de Joan Martinez Alier, esse ambientalismo contracultural pode ser encontrado no discurso dos movimentos afinados com a noção de ’justiça ambiental’. De acordo com o autor catalão, esse movimento surgiu entre membros da comunidade negra dos EUA, que perceberam que os impactos ambientais decorrentes do capitalismo não se distribuem igualmente entre as populações, já que os complexos industriais poluidores, os centros de deposição de lixo tóxico e outros perigos ambientais concentram-se nas áreas habitadas por populações pobres ou de minorias raciais. “Seu diagnóstico assinala que a desigual exposição aos riscos deve-se ao diferencial de mobilidade entre os grupos sociais: os mais ricos conseguiriam escapar dos riscos e os mais pobres circulariam no interior de um circuito de risco. Daí a ação decorrente visando a combater a desigualdade ambiental e dar igual proteção ambiental a todos os gr upos sociais e étnicos”, explica Henri Acselrad. O discurso da justiça ambiental busca trazer à tona os conflitos socioambientais decorrentes da expansão dos processos produtivos capitalistas sobre os territórios.

Ecoeficiência

     Uma terceira corrente é composta pelos ideólogos da ‘ecoeficiência’, que defendem o emprego da racionalidade técnica na mitigação dos impactos ambientais e riscos à saúde humana advindos das atividades industriais, da agricultura e da urbanização. Essa corrente, como explica Carlos Walter, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), no livro ‘A globalização da natureza e a natureza da globalização’, surgiu da incorporação, pelo capitalismo, de um discurso ambientalista que emergia das lutas sociais do final da década de 1960. Em 1972, explica, é publicado o relatório ‘Os limites do crescimento’, elaborado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), nos EUA, a pedido do Clube de Roma, criado por um grupo de executivos ligados a grandes transnacionais como a Xerox, Ollivetti, Fiat e IBM, entre outras. No documento, fica expressa a preocupação com o esgotamento dos recursos naturais caso se mantivesse m as tendências de crescimento que prevaleciam na época. Dessa forma, escreve Carlos Walter, “o ambientalismo começou a ganhar o reconhecimento do campo cientifico e técnico e, com ele, o próprio campo ambiental começa a se fazer mais complexo, à medida que é captado por um discurso, como o técnico-cientifico, que era objeto de duras críticas pelo movimento da contracultura”.

     Afinada com o discurso de desenvolvimento capitalista, a corrente da ecoeficiência introduziu no debate ambiental a ideia de ‘manejo sustentável’ da natureza, convertida em ‘recursos naturais’ ou ‘capital natural’. A principal preocupação dos adeptos dessa corrente está na desvinculação entre crescimento econômico e degradação ambiental. Foi ela que, no final da década de 1980, forneceu a base teórica para a formulação, pela ONU, do Relatório Bruntdland, que popularizou o conceito de desenvolvimento sustentável . Essa ideia, segundo Henri Acselrad, se preocupava principalmente em sustentar a base material do desenvolvimento. “Investia-se assim na busca de uma economia de meios, porém não se discutia a natureza dos fins para os quais estes meios eram mobilizados; ou seja, não se refletia sobre o conteúdo mesmo do projeto desenvolvimentista. Economizar matéria e energia por uma revolução da eficiência: eis o caminho que era assim proposto para prolongar no tempo um desenvolvimento que, em seus próprios termos, era inquestionado”, explica. Adotado por organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras, esse ambientalismo, segundo Acselrad, tornou-se hegemônico. Essa visão “pressupõe um risco ambiental único e instrumental: o da ruptura das fontes de abastecimento do capital em insumos materiais e energéticos, assim como da ruptura das condições materiais da urbanidade capitalista – ou seja, o risco de inviabilização crescente da cidade produtiva, por poluição, congestionamento, etc. Dado esse ambiente único, objeto instrumental da acumulação de riqueza, a poluição é apresentada como ‘democrática’, não propensa a fazer distinções de classe”, afirma Acselrad, no artigo ‘Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental’.

     E é exatamente essa corrente do ambientalismo, dizem os especialistas entrevistados pela Poli, que norteia as propostas da economia verde.

Serviços ambientais

     O eixo central da economia verde, como explica Larissa Packer, assessora jurídica da organização não-governamental Terra de Direitos, são os chamados mecanismos de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), que tentam solucionar os problemas ambientais a partir da lógica do mercado. “O PSA é um mecanismo para fomentar a criação de um novo mercado, que tem como mercadoria os processos e produtos fornecidos pela natureza, como a purificação da água e do ar, a geração de nutrientes do solo para a agricultura, a polinização”, escreve Larissa, no artigo ‘Pagamento por ‘serviços ambientais’ e flexibilização do Código Florestal por um capitalismo ‘verde’. “Para isso, é fundamental que exista possibilidade de valoração monetária, para viabilizar a comercialização e também a criação de leis que, por meio do estabelecimento de obrigações, criem a demanda para o mercado hoje inexistente”, diz.

     Segundo Luiz Zarref, engenheiro florestal da Via Campesina, um dos braços do PSA é o chamado mercado de carbono. Criado pelo Protocolo de Kyoto, o acordo impôs metas aos países para a redução da emissão dos gases de efeito estufa. Ele também permitiu que os países poluidores passassem a comprar permissões e créditos de compensação das emissões acima do estabelecido dos países que estão abaixo do limite. Ao mesmo tempo, no interior dos países, as indústrias poluidoras podem comprar créditos vendidos por proprietários rurais. Zarref explica: “Na lógica da economia verde, a floresta presta o serviço ambiental de capturar o carbono que causa o efeito estufa. Então, digamos que um hectare de floresta captura 20 toneladas de carbono por ano. Aquele hectare vai ser convertido em títulos financeiros, que vão ser comercializados na bolsa de valores, equivalentes a esse montante”. Segundo ele, já existem bolsas de valores es pecificas para esse tipo de transação, nos EUA e no Japão, “mas elas não estão funcionando a pleno vapor justamente porque não existe uma regulamentação internacional sobre isso. É isso o que está sendo proposto agora” diz. Atualmente, discute-se a inclusão de mecanismos de PSA no texto do novo Código Florestal brasileiro, cujo projeto de lei tramita no Senado. “Um dos defensores dessa ideia é o senador Blairo Maggi, que é um dos maiores produtores de soja do país”, assinala Luiz Zarref.

     De acordo com o texto de Larissa Packer, a proposta de atribuir valores monetários à natureza apresenta sérios problemas. O primeiro deles, diz ela no artigo, é que a inserção dos serviços ambientais no mercado gera um mecanismo perverso, em que quanto maior for a degradação, maior é o valor dos serviços ambientais. Além disso, ao não atacar fatores estruturais como a necessidade de produção sempre crescente, a comercialização de um volume cada vez maior de mercadorias e um consumo acelerado de recursos naturais e produção de resíduos, esses mecanismos só servem como um paliativo. “A agenda da economia verde”, aponta Larissa, “não prevê a modificação dos padrões de consumo e prevê estimular a mudança parcial dos padrões de produção unicamente por meio da atribuição de preço à biodiversidade e privatização dos bens comuns. Com isso, a sociedade não deixará seus modos destruidores, mas sim irá criar u m novo mercado para regular essas atividades, gerando mais privatização dos valores sociais e ambientalmente gerados [...] A degradação, portanto, não diminui. Pelo contrário, a natureza se converte em produto do mercado, inclusive do mercado financeiro”.

     Essa financeirização da natureza leva Carlos Walter a concluir que a economia verde é parte do problema, e não da solução. “Acho que estamos sendo seduzidos para um debate que surge de um problema real, que é a depredação dos recursos naturais e a desordem ecológica global, mas temos que ver que o problema é essa sociedade que transforma riqueza em dinheiro. O dinheiro é a medida da riqueza, ele não é a riqueza”, avalia.

Meio ambiente como ‘oportunidade de negócio’

     Para Luis Zarref, a economia verde é uma tentativa do capital de se utilizar da questão ambiental para criar novas formas de acumulação. “Não há nada de debate ambiental no discurso da economia verde. O que se tem é a reengenharia de uma parte do capital para continuar acumulando lucro num período em que ele está em crise nas suas formas clássicas de acumulação”, diz. Segundo Zarref, com cerca de 250 milhões de hectares conservados em reservas indígenas e assentamentos de reforma agrária, o Brasil é um grande atrativo.

     Zarref explica que algumas das propostas da economia verde já vêm sendo implementadas no país, com prejuízos sociais e ambientais enormes. “Na mineração, por exemplo, a grande discussão ambiental hoje é o chamado ferro gusa verde, que é substituição da madeira de desmatamento ilegal por eucalipto plantado nos fornos das siderúrgicas. Isso já está sendo feito no Pará, em Minas Gerais e no Espírito Santo”, afirma. Na lógica da economia verde, diz Zarref, “as empresas vão poder, além de utilizar o eucalipto para os fornos, dizer que estão reduzindo a emissão de gás carbônico do desmatamento, ganhando papeis de crédito de carbono para serem comercializados na Bolsa de Valores”. E destaca: “O que não aparece é que os eucaliptos estão expulsando agricultores, retirando terra que antes era voltada para a produção de alimentos e gerando pressão sobre terras indígenas, quilombolas e de populações tradicionais�€ .

     Outra estratégia da economia verde que causa preocupação para Zarref é a de fomentar a produção dos agrocombustíveis, em especial o etanol, que a ONU inclusive cita como exemplo de sucesso. “Com isso você cria uma corrida por terras para plantar cana que vai causar um encarecimento das terras e inviabilizar a produção de alimentos, levando à expulsão de muitos agricultores para as cidades. Com a cana, você inviabiliza toda uma rede produtiva: fica impossível comercializar feijão, mandioca porque só tem compradores para cana, não há sistema de comercialização. Isso sem contar os impactos de desmatamento e de exploração do trabalho”, analisa.

Impactos desiguais do desenvolvimento

     Marcelo Firpo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), caracteriza a economia verde como uma tentativa de produzir consenso em torno do papel do mercado na preservação do meio ambiente. “A economia verde é uma tentativa, apoiada por vários organismos internacionais e governos, de buscar um consenso em relação ao que fazer para combater a crise econômica e ambiental. Esse consenso se dá através de cúpulas da ONU, que têm centrado fogo no tema das mudanças climáticas globais, mecanismos de mercado e continuidade do sistema capitalista atual”, afirma. Segundo ele, com isso, o sistema capitalista busca escamotear os conflitos que existem no campo ambiental em torno do sentido do desenvolvimento. “Isso significa que certas questões e temas sociais e ambientais não são discutidos na economia verde. Não há critica ao modelo de produção e consumo, ao desenvolvimentismo, ao comércio int ernacional desigual e injusto, à divisão entre centros e periferias do sistema capitalista e à divisão internacional do trabalho, que são característicos do processo de globalização”, diz.

     A análise do ‘Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil’ , desenvolvido na Fiocruz e coordenado por Marcelo Firpo, dá a dimensão do impacto do desenvolvimento sobre os territórios e suas populações. “O mapa reúne denúncias de conflitos ambientais em decorrência desse modelo. Ele foi lançado há um ano com 298 conflitos e agora já são quase 400, alguns envolvendo vários municípios e mais de um estado. São milhões de pessoas no total, que estão sofrendo com a degradação ambiental causada por processos industriais, transposição de rios e hidrelétricas, por exemplo. Essas populações acabam impossibilitadas de reproduzir suas culturas e modos de vida de forma autônoma”, afirma Firpo. Segundo ele, esses são apenas alguns dos conflitos e dilemas que o discurso da economia verde procura ocultar, ao focar o debate ambiental sobre a questão das mudanças climáticas. “O conflito se dá porque a decisão pela ins talação de grandes empreendimentos econômicos e intervenções nos territórios é tomada sem a participação das populações que habitam esse território”, destaca. “Eles envolvem, por exemplo, o agronegócio, a instalação de siderúrgicas, rodovias, hidrelétricas, portos e outros empreendimentos, que causam impactos ambientais e sociais enormes, e que não trazem benefícios para as populações das regiões afetadas”.

     Alexandre Pessoa afirma que uma metáfora frequentemente usada pelo discurso ambiental hegemônico para sintetizar a questão das responsabilidades pela degradação do meio ambiente é a do avião: “Dizem que, se estamos todos no mesmo voo, temos que ser responsáveis pela condução desse avião. Esse discurso é desprovido de crítica, porque de fato estamos no mesmo avião, mas a direção dele não é feita pela sociedade, e sim por governos que têm interesses específicos e sobre os quais as transnacionais exercem um poder fundamental”, ressalta. E completa: “Se estamos no mesmo avião quem está na direção é um grupo minoritário, esse avião possui classes distintas, e um contingente significativo dos passageiros está sendo expulso sem páraquedas”.

Individualização da solução

     Segundo Carlos Walter, ao dissociar os problemas ambientais da questão social, o discurso ambientalista da ecoeficiência, no qual a economia verde se baseia, também opera um exagero da responsabilidade individual sobre a degradação ambiental, focando-se no combate ao desperdício de matéria e energia. “Hoje há essa história de ‘faça sua parte’, como se o todo fosse uma soma de suas partes. E não é. O debate ambiental é quase esquizofrênico: o mundo está acabando, e a solução é plantar uma árvore”, critica. E conclui: “Há uma defasagem entre o diagnóstico e o caráter quase pueril da solução, porque você não enfrenta a questão de fundo, que é a economia mercantil capitalista com o poder cada vez mais concentrado nas grandes corporações”. Ele também critica o papel de algumas ONGs ambientalistas, que dependem do financiamento de empresas e governos, na disseminação de um discurso ambiental despolitizado. “As ONGs surgem estimuladas pelos próprios governos e pelo Banco Mundial. Ao mesmo tempo em que operam um desmonte dos governos, acabam com direitos universais para atuar ‘a la carte’”, diz. Segundo ele, com o desenvolvimento tecnológico dos últimos 30 anos, a capacidade de emprego do capitalismo diminuiu muito. “Então há muitas pessoas formadas na universidade que não encontram emprego e acabam indo trabalhar em uma ONG, sem carteira assinada, vivendo de projeto em projeto. Assim você estimula toda uma economia precária, só que eivada de uma ideia de ativismo, em que se combate o efeito estufa trabalhando para a Shell”, aponta. Ironizando o poder de convencimento que esse discurso ideológico vem alcançando, Alexandre Pessoa conclui: “Acreditar em economia verde é como acreditar em tigre vegetariano”.

Rio+20: especialistas veem problemas nas propostas da ONU para o meio ambiente

     A cidade do Rio de Janeiro sediará, entre os dias 4 e 6 de junho de 2012, a Rio+20. O evento acontecerá 20 anos após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ou Rio 92, que reuniu 108 chefes de Estado na cidade para discutir ,aneiras de conciliar desenvolvimento econômico e preservação ambiental.

     A convenção do próximo ano terá como objetivo, segundo a ONU, “garantir um compromisso renovado em nome do desenvolvimento sustentável, avaliando o progresso obtido até o presente e as lacunas remanescentes na implementação dos resultados das maiores cúpulas de desenvolvimento sustentável, abordando desafios novos e emergentes”. Os debates terão como foco dois temas: a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza e o arcabouço institucional para o desenvolvimento sustentável.

     Pesquisadores ouvidos pela Poli, no entanto, já veem problemas na proposta da Rio+20. “Esse termo, ‘desenvolvimento sustentável’, vem servindo a vários interesses ao longo dos anos, inclusive para justificar políticas públicas que estão na contramão do próprio conceito, para fazer propaganda da responsabilidade social de empresas. Essa polissemia cria confusão e tem mais um apelo retórico, midiático e propagandístico de interesse de mercado”, afirma Lia Giraldo, pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CpqAM/Fiocruz Pernambuco).

     Para Luiz Zarref, o objetivo da conferência é incentivar entre os países membros a criação de mecanismos para a transformação dos processos naturais em mercadorias negociáveis. “Para reduzir o efeito estufa, por exemplo, o que está sendo discutido é o avanço do mercado de carbono, que é basicamente pagar para que não se desmate. Não se discute a criação de uma governança internacional que proíba a emissão de gases poluentes, o desmatamento, o agronegócio”, critica. Segundo ele, a Rio+20 reflete o avanço da influência do mercado sobre a conformação dos Estados nacionais. “É nítido o avanço da lógica de mercado dentro dessas convenções. A Rio 92, por exemplo, foi caracterizada por criar uma relação entre o Estado e a sociedade. Ao longo dos anos, houve uma substituição do Estado pelo mercado, sob o discurso de que o Estado é falido, é corrupto”, afirma Zarref.

     Essa é também a análise da ONG canadense ETC Group, uma das maiores críticas da Rio+20. Em um de seus relatórios sobre a conferência, a organização ataca o que entende como uma tentativa de excluir a maioria da população do debate ambiental. “Na ausência de debates entre governos e envolvimento da população, a ideia de que uma ‘economia verde’ sustentável é o meio para desenvolver e usufruir dos recursos biológicos e naturais [...] pode se tornar a maior apropriação de recursos dos últimos 500 anos”, alerta o relatório.

     Para o Brasil, defende Lia Giraldo, a Rio+20 deveria ser uma oportunidade para discutir temas como a justiça social e ambiental no campo, reforma agrária, proteção de florestas, impactos ambientais e sociais das atividades industriais e incentivo à agricultura familiar. “Mas esses são temas que vão de encontro ao modelo de desenvolvimento brasileiro, que obedece aos lobbies do agronegócio e da indústria química. Corremos o risco de repetir o mesmo discurso desenvolvimentista da década de 1970, apesar de termos hoje uma legislação mais avançada na área ambiental”, aponta. É nesse sentido que Alexandre Pessoa espera que a Fiocruz e o Ministério da Saúde contribuam para os debates. “Temos um papel fundamental na Rio+20, não só na questão ambiental, mas também no debate do modelo de desenvolvimento, que tem de ser envolvido por todo o setor da saúde. Estamos discutindo temas transversais, como promoção da saúde, controle social, impactos nos territórios dos sistemas de produção e seus reflexos no SUS”, explica.

     Paralelamente, organizações da sociedade civil se mobilizam para realizar a Cúpula dos Povos Rio+20, que deve acontecer simultaneamente à conferência da ONU. O evento deve reunir movimentos sociais, ONGs e fóruns e, segundo seus organizadores, pretende apresentar alternativas ao debate ambiental, tirando o foco do mercado e dos governos.

* Artigo produzido originalmente para a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/index2/index.php/artigos-e-debates/2101-economia-verde

A caída em combate do Comandante Alfonso Cano

      A morte em combate do Camarada e Comandante Alfonso Cano enluta o conjunto do movimento antiimperialista mundial, todas as vítimas da exploração capitalista, o movimento universal pelo socialismo, cada um dos povos que levantam bandeiras de soberania, dignidade e democracia. Aflige profundamente toda pessoa de bem do planeta, particularmente na América Latina, Caribe e Colômbia.

     Também dilacera profundamente as fibras mais nobres de seus seres queridos. Para eles nosso abraço. Compartilhamos intensamente de sua pena, sabemos melhor do que ninguém o que significa esta perda. Estendemos o mesmo carinho dolorido às famílias dos demais combatentes que tombaram nos mesmos acontecimentos. Seu sangue e suas vidas nos inspiram, desde já, futuras vitórias.

     As lágrimas de felicidade do Presidente Santos revelam que, por obra sua, caiu de verdade um grande, um portentoso homem, um revolucionário de talha histórica. Um formidável interlocutor de quem devia se desfazer antes de qualquer tentativa de aproximação. Aceitamos o desafio. Como Manuel e Jacobo, Alfonso sempre soube ser um grande mestre. E aprendemos com ele.

     Suas idéias e sua genial condução são parte do arsenal ideológico, político e militar das FARC-Exército do Povo. Ninguém poderá jamais arrebatá-los de nós. Seu talento e atividade revolucionária cresceram e amadureceram juntamente com nossa história. Nos dias de Marquetalia (http://insurgenciafariana.blogspot.com) já militava nas fileiras da juventude comunista. Até sua morte em combate nada pode distraí-lo da luta.

     Completou cinqüenta anos contínuos em tropel contra o regime, anos marcados por uma profunda capacidade de análise e uma invejável coerência ideológica e política. Bogotano simples e de humor refinado, dirigente estudantil e comunitário, antropólogo dos tempos duros da Universidade Nacional, audaz militante clandestino, será eterno exemplo do intelectual comprometido até a morte.

     Seus inimigos tanto do império ianque como os da oligarquia jamais se cansarão de tentar apagar sua obra com expedientes baixos. Ao lado de seu perfil político, o Camarada Alfonso Cano demonstrou ser possuidor de uma elevada capacidade militar. Soube conduzir, primeiro os comandos conjuntos Central e Ocidental e, sem seguida, as FARC todas, até o nível em que hoje em dia, amedronta o militarismo fascista da Colômbia.

     Eles sabem muito bem o que representam as FARC. A expressão real da organização e da luta irrenunciável contra a globalização capitalista. Somos um povo armado que denuncia e combate o caráter terrorista de sua democracia de mercado. Milhares e milhares de mulheres e homens que marchamos compactos pelo caminho da construção de uma nação e de um mundo sem opressores.

     As reservas petrolíferas da Colômbia, no ritmo que se pretende extrair, estarão esgotadas completamente nos próximos quatro anos. Pretendem nos ludibriar com a idéia de que, antes disso, será encontrado suficiente óleo para outros tantos. Nosso destino é poupar com o nosso óleo as reservas imperiais existentes, e pagar com a receita desse os créditos para a infra-estrutura funcional ao saqueio.

     Obviamente os créditos serão concedidos pela banca internacional. E para consegui-los o país deverá se comprometer a realizar grandes e crescentes cortes orçamentários na área social dos colombianos. Reformas tributárias, no regime de aposentadorias, trabalhista, na saúde e educação. Esse ataque avança agora a todo vapor no Congresso da República.

     O Tratado de Livre Comércio (TLT) e a abertura indecente ao investimento estrangeiro ameaçam arrasar o mais valioso do patrimônio humano, ambiental e econômico do país. Gigantescos projetos auríferos, carboníferos, turísticos, agro-industriais, bioenergéticos e agropecuários, entre outros, além de espoliar nossas riquezas, esmagarão impunemente a mão de obra em graus intoleráveis.

     Encontra-se em acelerada execução um modelo de desenvolvimento desigual e antipatriótico, resultado das manipulações urdidas a partir do palácio presidencial e dos diferentes ministérios, aprovado a toque de caixa pelo poder legislativo e declarado exeqüível pelas cortes, que não leva em conta minimamente a opinião do povo colombiano nem a de seus mais imediatos afetados.

     E dito modelo, que começou a ser construído décadas atrás com a violenta estratégia paramilitar, é apresentado como a salvação econômica do país, as locomotoras que nos levarão adiante. Nele se fundem os mais caros interesses do capital transnacional e da corrupta classe dirigente colombiana, que enriquece com somas fabulosas depois de cada acordo e contrato celebrados.

     Não existem na Colômbia espaços de discussão que tenham a capacidade de influenciar ou determinar de algum modo as decisões ligadas ao modelo de desenvolvimento. Como ficou demonstrado nas recentes eleições locais, os partidos políticos foram diluídos em mesquinhas lideranças pessoais corruptas e carentes de princípios. As forças políticas que poderiam discutir o modelo estão minadas.

     Só duas formas de luta se opõem a ele de forma corajosa e pertinaz: a luta de rua em marchas e protestos e a luta guerrilheira nas montanhas. As recentes disposições sobre “segurança cidadã” vinculam a primeira delas à delinqüência e a castigam com penas de prisão. Ao mesmo tempo exigem desmobilização dos levantados em armas sob a ameaça da aniquilação total.

     Tal é o quadro no qual toma corpo o desesperado afã de render as FARC-EP. Sabemos muito bem quais são os propósitos do Presidente Santos: enriquecer ainda mais os mais ricos e afundar ainda mais na miséria os mais pobres. Torna-se, portanto, como conseqüência de cardinal importância, estender pontes necessárias para fortalecer, unificar e defender a duas formas de luta vigentes.

     Mobilização de massas e luta guerrilheira estão chamadas a convergir em uma formação estratégica pela solução política para o conflito que se trava na Colômbia. A guerra não passa da determinação imperial e oligárquica de fechar todos os caminhos da oposição a seus planos de saqueio, o maço com o qual as classes dominantes esperam esmagar a rebeldia.

     A resistência heróica da insurgência colombiana, da mesma forma que a voz alta do povo mobilizado protestando, não pode cessar com um falso chamamento à negociação e ao consenso. Qualquer tentativa de desmobilizar a luta popular sem acordar solução que erradiquem suas causas estará fadada ao fracasso. Não pode haver paz com repressão e fome.

     As FARC-EP prestamos sentida homenagem à memória de nosso Comandante Alfonso Cano. Por nosso povo e por ele, nos comprometemos a persistir na busca da solução política até conseguir uma paz democrática com dignidade e justiça social. A voz de estudantes, trabalhadores, camponeses, comunidades indígenas e negras, desempregados, aposentados, mulheres e classes médias sufocadas tem que ser ouvida e atendida na Colômbia.

     Com o camarada Alfonso lembramos aos ilusos:

     “Desmobilizar-se é sinônimo de inércia, é entrega covarde, é rendição e traição à causa popular e ao ideário revolucionário que cultivamos e pelo qual lutamos pelas transformações sociais, é uma indignidade que traz implícita uma mensagem de desesperança ao povo que confia em nosso compromisso e proposta bolivariana”.

     Comandante Alfonso Cano!!!

     Morrer pela Pátria é viver para sempre!!!

     Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP

     Novembro de 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O papel dos partidos de esquerda hoje no mundo


     A América Latina foi vítima privilegiada das grandes mudanças que transformaram o cenário politico internacional, com a passagem de um mundo bipolar para um unipolar, sob hegemonia imperial norteamericana; de um ciclo longo expansivo a um ciclo longo recessivo, onde ainda estamos, como a crise atual confirma; a passagem de um modelo hegemônico regulador ou keynesiano ou de bem-estar, como queiramos chamar, a um modelo liberal de mercado, como a crise referida exibe de forma escandalosa.

     Nosso continente se viu afetado diretamente por essas transformações. Em primeiro lugar, pela crise da dívida, que atingiu a todos os países latino-americanos, colocando fim no longo processo de desenvolvimento econômico que presidiu nossas economias desde as reações de nossos países aos efeitos brutais da crise de 1929. Depois de cinco décadas em que o objetivo central de nossas economias era o de recuperar o atraso que tínhamos herdado da colônia e da dominação externa e das elites primário exportadoras sobre nossos países, foi substituído esse objetivo pelo da estabilidade monetária. Refletia a mudança de hegemonia as grandes corporações vinculadas à produção internacionalizada e sua comercialização para o capital financeiro, em sua modalidade especulativa.

     Em segundo lugar, vários dos países do continente – em especial o Brasil, a Bolívia, o Chile, o Uruguai, a Argentina -, entre eles os de maior força do movimento popular, foram vítimas de ditaduras militares, que quebraram a capacidade de resistência das forças populares, preparando o campo para políticas conservadoras diante de democracias destroçadas.

     Como resultado direto desses dois fatores, instalaram-se na América Latina governos neoliberais em praticamente todo o continente, fazendo da nossa região o reino desse modelo antissocial, em suas modalidades mais radicais do mundo, impondo Estados mínimos que renunciavam de sua ação em favor do mercado; terminando de abrir de forma escancarada nossos mercados à açao predatória do capital internacional; fragmentando nossas sociedades pela imposição do mercado informal de trabalho e de formas suplementares de superexploração do trabalho; favorecendo as ideologias consumistas em detrimento das formas coletivas de ação e de luta pelas alternativas políticas e democráticas para atender os interesses das maiorias.

     A imagem de nossas sociedades e do continente como um todo no final da década de 1990 era de sociedades destroçadas, desmoralizadas, como que condenadas à miséria e ao abandono pelos poderes públicos. As crises do México, do Brasil e da Argentina revelavam como a hegemonia do capital financeiro promovida por governos neoliberais nos havia deixado indefesos diante dos ataques especulativos que passaram a reinar no mundo – como se vê até hoje, agora afetando o centro do mesmo do sistema.

     Foi nesse marco que a América Latina, mais uma vez foi encontrar forças para reagir e dar uma volta espetacular nessa herança, mais que maldita, fatal, que nos levaria ao destino a que agora condenam a Grécia e que vive o próprio México, pioneiro do livre comércio e dos Tratados de Livre Comércio com os EUA, pelo qual paga um preço dramático.

     Foram eleitos, sucessivamente, presidentes latinoamericanos identificados com a necessidade de superação do neoliberalismo, amparados na centralidade das políticas sociais, na prioridade dos processos de integração regional e nas alianças Sul-Sul como forma de reinserção soberana no mundo, e nos Estados indutores do crescimento econômico e da universalização dos direitos sociais.

     Foi nesse marco que estão sendo construídas as condições de hegemonias alternativas, no marco de um mundo velho que insiste em sobreviver e de um mundo novo com dificuldades para afirmar-se. No marco de um processo mundial de crise hegemônica, vamos buscando construir as vias alternativas para superar nossa herança de continente mais desigual do mundo.

      A conquista de governos foi e tem sido fundamental, depois da acumulação de força social na resistência às politicas antipopulares e antidemocráticas dos governos neoliberais. Porque é a partir dos governos que se pode colocar o Estado para promover a superação das atrasos a que fomos relegados, para recuperar direitos sociais expropriados e estendê-los a todos, fazer do mercado interno de consumo de massas um dos pilares de um novo modelo de crescimento com distribuição de renda.

     Os governos latino-americanos que optaram por esta via demonstraram e seguem demonstrando capacidade de resistência aos efeitos perversos da crise internacional, aceleram suas políticas, mesmo sem ter força suficiente para fazer triunfar seu modelo em escala global. A América Latina segue isolada, com alianças com países do Sul do mundo, mas sem capacidade ainda para fazer prevalecer em escala mundial projetos pós-neoliberais.

     Nos nossos países, os partidos tampouco ficaram imunes aos fatores negativos que nos afetaram como sociedades. Uma parte dos que faziam parte do campo da esquerda aderiram ao neoliberalismo – nacionalismos como o peronismo, o PRI mexicano, social democratas como Ação Democrática da Venezuela, PS chileno, tucanos brasileiros, abandonando o campo popular.

     Mas fenômenos como a precarização da maior parte da força de trabalho, com o processo de fragmentação social correspondente e o enfraquecimento relativo dos sindicatos; a derrota do socialismo e a desmoralização da ação política, das soluções coletivas, dos Estados, dos partidos, dos governos, dos parlamentos; com a mercantilização das relações sociais e culturais - os partidos de esquerda passaram a ter um horizonte negativo para sua ação.

     A reunificação de sociedades muito fragmentadas e heterogêneas passou a depender de lideranças fortes na sua capacidade de representar alternativas populares e coletivas, com processos de recomposição por cima, mais adequados à reestruturaçao por baixo, como as promovidas por partidos populares e movimentos sociais.

     Lideranças como as de Hugo Chavez, Lula, Nestor Kirchner, Evo Morales, Fernando Lugo, Rafael Correa, Mauricio Funes, Ollanta Humala, Pepe Mujica – respondem a essa necessidade urgente de reação popular antes mesmo que os sujeitos sociais e políticos históricos pudessem se recompor.

     Gramsci nos advertia que a história dos partidos não é sua história interna, mas a da sua inserção no universo político em que atuam. Temos que avaliar nossos partidos pelo papel que têm desempenhado ou que devem desempenhar na construção de hegemonias alternativas ao neoliberalismo – o objetivo político maior do nosso tempo. 

     A conquista dos governos foi fundamental, há novas maiorias políticas e sociais em nossas sociedades, que tem permitido a eleição e reeleição das novas lideranças, o que tem dado continuidade aos processos iniciados há pouco mais de uma década. Mas esses projetos não se constituíram ainda em força hegemônica nas nossas sociedades, profundamente afetadas pelos valores mercantis, pela fragmentação social, pela ação das mídias monopolistas, por estruturas políticas superadas, incapazes de representar as profundas transformações sociais que estamos vivendo.

     Sem uma análise das formas de hegemonia ainda dominantes, como ponto de partida, será impossível reconstruirmos processos de construção de hegemonias alternativas – populares, democráticas, solidárias, humanistas – a que começamos a apontar e cuja continuidade supõe passar das maiorias sociais e politicas às maiorias ideológica e culturais, que consolidem esses avanços e dêem a forma de novos valores à nossas sociedades, entre o nosso passado e o nosso futuro.

     Nesse marco é que os partidos de esquerda podem debater e descobrir as novas formas que devem assumir, para estar sintonizados com os desafios do tempo presente.

Postado por Emir Sader e Alterado para este Blog por Cleberson Zavaski

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O avanço da rivalidade religiosa


Seguidores da umbanda e do candomblé são vítimas de preconceito, sobretudo dos evangélicos, e a Justiça e a polícia não estão preparadas para lidar com o crime

Juliana Dal Piva e Michel Alecrim

    Uma característica atribuída ao povo brasileiro é a tolerância religiosa. O caldeirão de culturas que formou o País teria propiciado a convivência harmônica entre os diferentes credos, ao contrário de outras nações onde violentas disputas derramam sangue inocente. Na prática, porém, a realidade é outra. Seguidores das religiões afro-brasileiras sempre conviveram com a desconfiança alheia. Nos últimos tempos, há indícios de que a situação se agravou. Somente no Rio de Janeiro, são contabilizados, por ano, quase 100 casos de agressões morais ou físicas envolvendo intolerância religiosa em relação aos praticantes de umbanda e candomblé. “Em sua maioria esmagadora, os ofensores são membros das igrejas neopentecostais”, afirmou à ISTOÉ Henrique Pêssoa, delegado da 4a DP, no centro da cidade, que há três anos recebeu uma designação especial e pioneira no Brasil para cuidar de casos que envolvem crimes de viés religioso.

      “Cada neopentecostal tem a missão de ganhar adeptos, é uma obrigação religiosa, daí o proselitismo. A missão é clara: divulgar e converter”, explica a antropóloga da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Sonia Giacomini, que pesquisa o tema há 20 anos. Ela diz que o intuito de arrebanhar mais e mais fiéis é bastante organizado. “Existe uma certa logística. Por exemplo, uma igreja é instalada onde havia um cinema pornô, pois ali seria uma área especial para fazer uma conversão, cheia de pessoas vulneráveis”, apontou.

PRECONCEITO

     O problema é que a busca por fiéis transforma-se, às vezes, em perseguição. Na Ilha do Governador, na zona norte, há denúncias na 4ª DP de representantes de religiões afrobrasileiras contando que terreiros (os locais onde são realizadas as cerimônias de umbanda e candomblé) estavam sendo destruídos e seus líderes escorraçados da Ilha por traficantes evangélicos neopentecostais. “Ali, criamos a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) porque era extremamente necessário”, diz Ivanir dos Santos, membro da comissão. Este e outros 39 casos em todo o País foram denunciados em um relatório produzido pelo grupo que reúne 12 religiões e entregue ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Martin I. Uhomoibai.

     Entre as denúncias, está a da Associação da Resistência Cultural Afro-Brasileira Jacutá de Iansã, que não conseguiu abrir conta-corrente na agência Abílio Machado da Caixa Econômica Federal, em Belo Horizonte (MG). Os diretores contam que esperaram quatro meses para receber a seguinte resposta: o banco é livre para abrir conta de quem quiser, e não queria a associação como correntista. Em São Paulo, a Associação Beneficente de Oyá e Ogun acusa a prefeitura de discriminação por ter lacrado sua sede no bairro de Santa Mariana, sob a alegação de desrespeitar o zoneamento. Segundo eles, o desrespeito se deve unicamente ao fato de eles estarem no local. Até na considerada sincrética Salvador (BA), a prefeitura foi denunciada por ter destruído parcialmente o terreiro Oyá Onipo Neto no bairro de Imbuí. No processo, diz que o terreiro era vizinho à propriedade de um funcionário da prefeitura que não gostava da proximidade com o templo. Os três casos ocorreram em 2008 e ainda estão sendo investigados.

     No Rio, um dos terreiros mais antigos do País, de 1908, foi derrubado recentemente. Funcionava no município de São Gonçalo, não muito longe da capital, em uma pequenina casa, que foi posta abaixo para a construção de um galpão. A iniciativa da demolição foi do dono do imóvel, o militar Wanderley da Silva, 65 anos, que desconhecia a importância do endereço. O problema, segundo lideranças religiosas regionais, não foi o ato dele e, sim, o da prefeita de São Gonçalo, Maria Aparecida Panisset (PDT), que teria ignorado os pedidos de umbandistas para salvar o local tombando-o. A prefeitura expediu uma nota dizendo que nada poderia fazer porque a casa era particular. Mas outro caso envolvendo a prefeita Maria Aparecida, que é frequentadora da Primeira Igreja Batista Renovada, provoca dúvidas entre os religiosos.

NA MIRA

     Maria Aparecida estaria forçando a desapropriação de um local onde funciona outro histórico terreiro, o Centro Espírita Caboclo Pena de Ouro. O presidente da Casa, Cristiano Ramos, diz que a explicação oficial é a construção de um Complexo Poliesportivo no local – embora haja um centro esportivo com características semelhantes na região. O caso virou, em abril, uma disputa judicial. “Tentei negociar várias vezes, mas ninguém quis me ouvir”, diz Ramos, que alega não ter recebido informações sobre indenização até agora. Procurada por ISTOÉ, a prefeitura não deu retorno.

     Muitas iniciativas para combater a perseguição ainda dependem de apoio governamental. Por exemplo, o tombamento de templos – que são pedidos e não são atendidos pelas prefeituras –, a morosidade na apuração de denúncias de perseguição e a falta de providências contra policiais que se recusam a investigar casos de intolerância. Para o delegado Henrique Pêssoa, saber a abrangência exata desse tipo de crime, que tem pena de um a três anos de reclusão e multa, é quase impossível. Os registros raramente são feitos de maneira correta e, além disso, a lei não costuma ser cumprida. A bancária Elisângela Queiroz descobriu isso na prática. Chamada de “macumbeira safada” por um colega de trabalho, ela procurou uma delegacia, mas recusaram o registro da ocorrência. “Chegaram a me dizer que era apenas uma briguinha”, contou ela.

     Pesquisa recente da Fundação Getulio Vargas aponta que 0,35% da população declarou ser praticante de religiões afro-brasileiras. O teólogo Jayro de Jesus acredita que é muito mais e até estima um crescimento de quase 70% no número de terreiros nos últimos 30 anos. “Acho que as pessoas estão sendo segregadas e, por isso, não tiveram a altivez de se autodeclarar nos censos”, afirma. Ele faz parte do grupo que está discutindo o mapeamento dos terreiros existentes no Brasil, com apoio da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. A expectativa é de que os trabalhos comecem no início do próximo ano e durem até 2013. Em um levantamento feito em 2011, foram localizados até agora, somente na região metropolitana do Rio, 847 terreiros. Com os dados obtidos, o próximo passo será a implementação de um Plano Nacional de Proteção Religiosa. Para impedir a propagação de conflitos movidos pela religião, é preciso agir rápido.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Comentários cancerígenos

     A repercussão do câncer de Lula na internet remete ao clima de baixarias que inundaram as redes sociais nas eleições 2010. Não à toa. Lula é peça-chave no jogo político, e a boçalidade destampada no período eleitoral continua a ser alimentada à farta.

     O ex-presidente fez bem ao tornar logo público o tumor na laringe. Agiu com a transparência que se espera de quem deixou o Planalto com índice de aprovação de 87%. Não se trata apenas de um drama pessoal. Embaralha qualquer cenário que se vislumbre para as eleições municipais de 2012 e, obviamente, para a sucessão presidencial de 2014.

     É nesse contexto que desponta nas redes sociais a campanha “Lula, faça o tratamento pelo SUS”. Ela renova o ódio reacionário que marcou a disputa eleitoral do ano passado, em que o auge foi a exortação do afogamento de nordestinos em São Paulo.

     Lula poderia ir a um hospital público, como o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, mas preferiu o Sírio-Libanês, onde seus médicos trabalham – também ali se trataram de câncer o então vice-presidente José Alencar e a então chefe da Casa Civil Dilma Rousseff. Aliás, é desejável que ele não ocupe vaga de quem depende da rede pública de saúde.

     Por que a campanha para Lula se tratar pelo SUS? Só ressentimento e ignorância explicam tamanha estupidez. Algum mimimi se no lugar do petista estivesse um tucano de densa plumagem? E se Lula fosse ao Instituto do Câncer não receberia tratamento de ótima qualidade, como todos que lá estão? O mais curioso é ver que o sujeito que quer Lula num leito público também comemorou o fim da CPMF, cuja extinção beneficiou uma parcela de brasileiros que, da classe média para cima, deixaram de entregar 0,1% sobre o valor de cada movimentação financeira para a saúde pública.

     O ódio dessa minoria contra Lula escandaliza agora alguns de seus críticos sensatos na imprensa. Mas não se trata de cobrar comportamento decente de leitores, quando parte da mídia é responsável por fomentar essa raiva e dela se beneficia. Basta recordar como foi a cobertura do título honoris causa concedido a Lula pela Sciences Po.

     Choca que a galera vomite nas redes tanta escrotidão com a mesma — ou até mais — desinibição que em círculos íntimos. A parada, porém, é mais profunda. Não é uma questão de compostura, mas classe. Melhor, classes. Num clima que transborda o ódio de quem sente as referências de exclusividade social se esvair, ainda que muito, mas muito lentamente.
 
Por Michel Blanco . 31.10.11 - 10h13