Por Pedro Serrano, jurista, e
professor de direito na PUC-SP
“O
Brasil vive um momento perigoso e triste de crescimento acelerado de medidas
próprias de um Estado de exceção, que estão sendo praticadas cotidianamente e, o
que é mais grave, naturalizadas. Nossa incipiente democracia vai assim se
esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que confere a aparência de um
Estado democrático, mas ao invés de ampliar e efetivar direitos, os suprime
paulatinamente”, constata Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da
PUC-SP, em artigo publicado por CartaCapital,
31-10-2016.
Eis
o artigo.
O
emprego de medidas e decisões próprias de um Estado de exceção tem se tornado
constante na rotina da nossa sociedade, o que sinaliza que vivemos uma perigosa
escalada antidemocrática.
As agressões à nossa democracia se banalizam sem causar alarido e, de forma
acelerada, retiram direitos e afrontam o Estado democrático de Direito.
Não
se tratam apenas de situações isoladas, mas de ataques cotidianos, e algumas
ocorrências recentes corroboram a percepção de que a democracia se enfraquece,
ao mesmo tempo em que um Estado cada vez mais autoritário vai ganhando
espaço.
Ao
recusar reclamação feita pelos advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra o juiz Sérgio
Moro, sob alegação de que a Operação Lava Jato “não precisa seguir as regras dos
processos comuns”, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região declara formalmente
tal juízo como uma fonte de exceção, e não como uma fonte de Direito, o que
deveria, no mínimo, causar desconforto na sociedade.
No
campo dos poderes executivos, tais medidas também têm sido comuns. A infiltração
de um capitão do Exército entre estudantes que se organizavam para participar de
um protesto contra o presidente Michel Temer, no início de setembro, em São
Paulo, também foi constatada sem grandes repercussões.
É
importante observar que um agente do Estado realizou ações de espionagem contra
um movimento pacífico de caráter reivindicatório, o que atenta contra os valores
da nossa Constituição e pode, inclusive, caracterizar-se como ilícito penal face
a lei de abuso de poder.
Cabe
apontar ainda que a atividade de espionagem é instrumento utilizado em situação
de guerra entre Estados. Usada no âmbito interno, no entanto, configura-se como
prática tipicamente de exceção.
Os movimentos
sociais e seus agentes
são tratados não mais como cidadãos que têm o legítimo direito de se expressar e
reivindicar, mas como inimigos. Existe uma força de exceção pronta a
combatê-los. Ressalte-se que a democracia tal qual conhecemos hoje foi uma
construção justamente dos movimentos sociais, que sempre lutaram pela ampliação
de direitos e das liberdades democráticas.
A
essa tendência crescente de suspensão do direito de reunião e de manifestação
política das pessoas
soma-se a expansão da Polícia Militar como força de ocupação territorial,
sobretudo das periferias, com vistas a estabelecer um estado de exceção
permanente nas áreas dominadas pela pobreza, onde os direitos mais elementares,
como o de livre circulação, são suspensos.
Essa
expansão se dá tanto através de medidas judiciais, como a que anulou a sentença
de condenação aos policiais que participaram da chacina do Carandiru, quanto por intermédio do Executivo, que
investe em um sistema de segurança beligerante.
Os
valores gastos pelo governo do Estado de São Paulo com armamentos entre janeiro
e outubro deste ano superaram em 136% os gastos de todo o ano passado. Foram
mais de 97 milhões de reais em materiais bélicos, explosivos e munição, contra
41 milhões de reais em 2015.
Esse
aumento se deu em um momento de grave
crise econômica, em que o governo apoiado pelo partido do governador
propõe o congelamento de gastos públicos com serviços essenciais de saúde e
educação.
Já
a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, convocou asForças
Armadas para discutir um
plano emergencial para a área de segurança pública, o que é inconstitucional e
descabido. Além de não ser papel do STF cuidar de segurança pública, as Forças
Armadas não foram concebidas para atuar nesse contexto, mas em ambiente de
guerra.
Também
neste caso não se viu qualquer manifestação de surpresa; ao contrário, sempre
que se fala em intensificar a repressão, há uma parcela considerável da
sociedade que aplaude e, assim, legitima tais práticas.
Chama
a atenção ainda o fato de que embora, nos últimos anos, o País tenha avançado
muito na punição de crimes contra o Estado, principalmente crimes de corrupção, os crimes cometidos pelo Estado contra o
cidadão, na maior parte das vezes, ficam impunes.
O
abuso de poder e de autoridade são recorrentes e ainda que setores incluídos
economicamente e sabidamente progressistas estejam cada vez mais sendo vítimas
desse autoritarismo, nas periferias das grandes cidades essa sempre foi a regra
vigente.
O
Brasil vive um momento perigoso e triste de crescimento acelerado de medidas
próprias de um Estado de exceção, que estão sendo praticadas cotidianamente e, o
que é mais grave, naturalizadas. Nossa incipiente democracia vai assim se
esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que confere a aparência de um
Estado democrático, mas ao invés de ampliar e efetivar direitos, os suprime
paulatinamente.